Seis semanas, algumas doces horas todo dia, uma ou duas, quiçá três horas de sonhos, não conseguia dormir mais do que isso naquela cela claustrofóbica. Sentia-me como um fantasma definhando, com todos os desejos amortecidos, um outrora sonho de liberdade em estado de suspensão. As vezes um estranho desejo de ter meus pais novamente me vinha a cabeça. Sentava no canto da cela e chorava.
Eu era tratado como um gringo de merda, um resto fecal de um sonho que morrera em mil novecentos e sessenta e nove. Acho que nem julgamento eu teria direito, cidade pequena, sociedade primitiva, nem humanos pareciam, me jogaram num buraco, se faziam o imenso trabalho de jogar alguma água e alguma comida vez ou outra para o pobre animal aqui.
De repente, eu me detestava, porque tinha sido tolo e inocente demais para com esse mundo doente. Essa vida doida que rasgara meus planos, despejara toneladas de injustiças sobre esse que além de pó, não era nada mais. Ainda que tinha que suportar vez ou outra o mal humor dos guardas. “Chico de mierda!”, “Voy a matar-te”. Devia ter matado alguém muito querido para tal revolta, o que pouco me interessava para ser sincero. Se o velhote era prefeito ou dono do único bordel da região, não fazia diferença. A consequência estava feita, e as chances de sair dessa limpo eram nulas. Faziam de mim uma menina nas poucas vezes que me deixavam tomar um banho. Acho que era o o futebol de quarta-feira a noite para esses chilenos de merda. “Chiquita, vamos a bañarmos”. Nem resistir valia a pena. Entregava meu corpo a aqueles imundos. O que era esporádico no começo, virou quase que rotina depois da terceira semana.
A cela se fechava, eu ouvia os passos folgados de seus coturnos no concreto liso. Ficava parado no meio do quarto, podia sentir a palidez de meu rosto, a terrível humilhação que era já não se importar tanto com o que acontecia. Um estado de falta de dignidade latente. Vezes ficava zangado e segurava meus cabelos com força, num choro forçado e engasgado, berrava com toda a força enquanto puxava os cabelos, detestando-me, batendo com os punhos contra o chão ou a parede, até o sangue escorrer e borrar a decoração da minha cela. Cambaleava nos meus dois metros quadrados com os braços agarrados contra o corpo, lutando contra a horrenda realidade, expulsando-a da minha consciência, bufando do mais puro ódio.
Nessa noite, uma solução me parecia viável, não era covardia nem muito menos falta de dignidade pensar em acabar com a própria vida. Era sim um ato de misericórdia consigo mesmo. Porque me permitir tamanho lixo, tamanho detrimento de minha imagem, quando a pouco, um viajante libertador tinha saído de seu lar agora se encontrar em tamanha decadência era o suicídio lento. Porque não acelerar o processo?
Não me lembro. Talvez uns quatro meses tenham se passado com essa situação crítica. Sabia que aquele desejo de dar cabo a minha vida voltaria em breve, bastava um passo mais em direção do poço. Ia vivendo minha solidão de cárcere. Depois de um tempo, acho que virei carne de vaca, o frescor dos primeiros estupros não voltava, e aos poucos eu caia no esquecimento deles. Depois de um tempo acho que inclusive alguma bicha autêntica foi presa, um outro boato que me veio, era que havia esfaqueado o seu namorado e a mulher com quem ele o traía. Não preciso dizer que essa boneca fez a festa dos, guardas e presidiários, nunca vi alguém tomar tanto banho. E mais, ir para o banho com tamanho gosto e prazer.
Mas sempre que chegava a noite, o que eu podia fazer? Minha alma anestesiada e nada serena com tamanha enxurrada de vazio, meus pés sólidos feito rocha, sobre a cama, o que o resto do mundo estaria fazendo?
Os rumos começaram a mudar quando um engravatado, de merda por assim dizer, adentrou minha cela, alegando ser diplomata brasileiro, que buscava de algum modo minha deportação de volta para minha pátria. Essa palavra me soava cômica, a cara de interrogação do engravatado ao me ver gargalhando foi impulso para um dos mais autênticos momentos de felicidade que havia ganho nos últimos meses.
quinta-feira, abril 24, 2008
Em Busca do Eu - 9
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