Eu costumava sentir saudades do garoto de dezesseis, dezessete, dezoito e dezenove anos que escrevia esses textos. Mesmo sabendo que essa coisa toda havia começado com uma garrafa do velho Jack. Na real, foi quando quebrei uma velha garrafa de Jack. Naquela época vivia escorregando pelas ruas do centro, pela biblioteca municipal, pelas velharias encardidas de um centro agonizante. Era uma sobrevivência infame para uma vida medíocre. Recém formado na colégio, aspirante a futuro da classe intelectual brasileira, e sem o menor tesão em nada que acontecia ao meu redor. Eu havia perdido toda e qualquer dignidade que um moleque da classe alta podia ter. Gastava o dinheiro honesto de meu pai com bebida falsificada, com boates mofadas e com falsos amigos. Sentia um renegado pela vida, um fudido e cagado nesse mundo doente.
Lembro como se fosse hoje, era final de ano, próximo as festas natalinas, espiava pelo vidro imponente da empresa que apostava as fichas em mim. Lá fora aquele rio morto serpenteava pra lá e pra cá como uma ferida exposta e apodrecendo a céu aberto. Ao meu redor, as mais importantes mentes da tecnologia nacional realizavam jogos e se empanturravam de comida a bel prazer para celebrar o nascimento de um mito que perdura até hoje, um mito de barba e cabelo por fazer, um mito que diz amam-se e é compreendido por, gastem todo seu dinheiro, torrem seus cartões de crédito, excedam limites, no natal tudo pode. Eu segurava um copo de cerveja, um tanto quanto choca, nem ligava. Olhava a cidade desentupir com toda aquela gente desesperada em seus automóveis rodando em direção das serras.
Estava cansado daquela rotina, daquela penitência. Cansado daquelas mesmas caras vazias. Contava os minutos para um possível fato insignificante, que poderia abrir um mar de possibilidades. E depois? Depois vem sempre esse famigerado e terrível depois, aquele que assola todos, e principalmente os velhos cheio de pus que agonizam em suas cama desejando ter morrido jovens e belos. Uns poucos já desfrutavam de deliciosos doces natalinos, com suas caras risonhas e profundidade rasa de significados. Matei minha cerveja, me desviei de um ou dois importunos de fantoches dessa vivencia louca. Sem nem deixar rastro ou marcas desci a escadaria do prédio, aquela fortaleza poderosa aonde magnatas controlavam o futuro de todos.
Me joguei na rua, rua que transmite o caos durante todo o ano, vi a figura de um cachorro magrelo e moribundo, havia deixado o carro pra trás, tinha tempo até o horário combinado, e caminhando fui sem muito rumo até a avenida principal que corta esse centro comercial, que orgulhosamente ostenta tantos nomes grafados em inglês com letras de douradas. Até as ruas aqui têm nome gringo. Rua Texas, Rua Arizona, Rua Califórnia, e é justamente na esquina da Califórnia com a avenida principal que me jogo contra o poste e espero um ônibus pro centro. O mundo corre em câmera lenta, como um deja vu desembestado, sinto que algo pode estar para mudar.
Ventava horrores e eu carregava um peso que eu sentia estar prestes a escoar pelo ralo. Me joguei pra dentro de uma lata de sardinhas com roda e deixe que a inércia me levasse até o centro do universo paulista, a cara da cidade. Como que cuspido pra fora, me dei conta que estava de pé na esquina da Augusta com a Paulista. Esquina que tinha história, esquina que embalou letras do Roberto Carlos e aventuras noite adentro de um jovem desavisado. Esquina de malícia e de urgência empresarial. Arrastei meus pés involuntariamente pra dentro daquele imenso conjunto de concreto. Lojas, neón opaco, pessoas engravatadas e lá no meio, perdido no tempo, uma sala de cinema que saia do censo comum e ridículo das grandes cadeias de entretenimento que mais se preocupam em encher o rabo de grana do que disseminar qualquer cultura minimamente decente.
Parado na escadaria desse cinema de épocas de ouro, jogo mão adentro do casaco, fico a ler os cartazes, observar o caixa com seu estilo antigo, e seu cobrador sexagenário. O tempo, o garoto que escrevia todas aquelas merdas, que pensava todas aquelas merdas passa na minha frente, se despede, não entendo direito o que acontece, um ligeiro empurrão e um sorriso maroto me surge por sobre o ombro.
“Olá...”
E foi assim... assim que ela entrou em minha vida... para não sair mais.
quinta-feira, abril 03, 2008
Crônica de uma Fênix.
Marcadores:
pensamentos
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário