A estrada sempre trás algo além da curva. Numa sucessão quase harmoniosa. Estamos entre os pinheiros, entre o capim queimado e entre o céu de um azul tão forte que chega a causar uma sensação de pequenez. O carro roda suavemente a uns oitenta quilômetros por hora. É um deslize quase silencioso, de acolá não se vê nada, pra cá só e somente o carro corta o vazio. E tudo que eu quero é chegar no além da curva. Com meu coração batendo forte dentro de uma mochila, sei que parar não é uma opção. Por isso deixo os pinheiros para trás. Um casa. Pinheiros, e o por do sol mais lindo que já pude ver. O azul se anegra-se e por demais de capricho ganha pequenas lágrimas brilhantes. E o carro roda.
Roço a mão no cambio e nas coxas roliças de Rita. Ela dorme, o seio obedece os solavancos do carro. E a curva não chega. A ponte atravessa o riacho seco, os galhos quebradiços dão indicio da caatinga que teima em desolar boa parte dos cantos de cá. A única luz artificial em todo sertão, é a brasa de meu cigarro, pendurado em minha boca, derrubando cinzas pela janela, protejo meu fogo criado com o retrovisor. Chuvisca lá na frente, o inferno nunca recebe a dádiva dos deuses, o diluvio sempre está lá a frente. Uma casa velha, parede doida do tempo, uma vaca seca e morta por dentro e uma pequena fogueira exibe o espectro de um ser humano batido e surrado nessa terra nossa que mais é terra de ninguém.
Areia, árido, fumaça e distorção de meu horizonte. A mula morta, já é benfeitora dos urubus, atentos ao deslize dos vivos na corda bamba da dureza das terras de cá. Acolá chove. A flor da alma de Rita dorme, descansa e de extraordinário só me resta suas mãos. Suas mãos doídas me lembram as mãos de lavadeiras. Rústicas e feito couro de jumento mastigador de relincho. O asfalto, nunca molhado, apenas uma chapa quente que avisa os perigos de parar por aqui, lembram a mão de Rita. E a curva continua além do campo de margarida que ela cativa em seus sonhos.
Queria uma foice, cortaria o grande firmamento e buscaria o verde que foi roubado dessa terra esquecida. Luminoso, um brejo seria melhor, dois barracos, o sexo de Rita pulsa e é tão convidativo como o mentiroso oásis que vislumbro por de trás do horizonte.
A violeta murcha ainda decora o cabelo desconjurado da pequena. Bom dia, o sol raia, a gasolina não assusta e a curva não chega. Mas não deve tardar. O asfalto piora, bom sinal, mais gente passa por aqui. Almas a caminho da vida constante do vilarejo ao norte. Certo medo agudo de chegar lá e a curva não estar. O sol a pinho volta a maltratar o capim marrom que brota esparsamente.
Aqui e a li surgem casas humildes, sertanejas e de bom coração. Telhado de palha e taipa, isso quando o afortunado tem chance de botar as mãos em um pouco de argila. Quero dizer, isso quando como a dos pobres, pois são rebocadas toscamente, cercadas de alpendres e com as paredes descascando e mostrando sua nudez que ninguém quer ver. Pois quando o pobre sujeito deixa de lado o lado pobre, a casa ganha telhas e por vezes mais de uma construção dentro de sua propriedade.
Rita dorme, se fosse dentro de uma dessas palhoças feita de babaçu, não passaria de uma garota cansada, entregue a um longo sono. Pra lá surge umas casinholas feitas de carnaúba. Só não vi nada feito de pau-a-pique, a madeira aqui é seca, a muito Deus deixou de dar natureza para esse pedaço de cidade perdida.
A casa além da curva é de telhas feitas de palmas de coqueiro. E de tamanha esperteza que chega a me assustar, o resto do babaçu serve de material pra porta e janela, além de fazer todo o cercado. A curva agora é aqui, e o senhor rasgado de sol e firme feito rocha me espera na porta. Pela fresta da porta, num vislumbre pra lá de sobrenatural, vejo a velha, sábia e corajosa, sobrevivente de um fim dos tempos que já foi e ainda vem e vai por essas terras. Acima de seu ombro esquerdo um par de morcegos se penduram nas sustentações do telhado rudimentar. Dia. Indico com a cabeça a adorável Rita que dorme, dorme para não mais acordar.
O cangaceiro não diz uma palavra, com um aceno dois moleques desproporcionalmente grandes no tronco surgem por detrás da casa e se aproximam. A mãe, a velha, a paridora do sertão desaba no pranto, levam Rita pra dentro, o velho não mexe um músculo. O carro me convida ao seu banco já moldado a minha vontade, e a curva volta a estar acolá de longe.
terça-feira, junho 17, 2008
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