segunda-feira, fevereiro 25, 2008

Em Busca do Eu - 1

Vinte e dois de fevereiro, barrete em minha mão esquerda e prestes a ser arremessado ao ar. Depois de anos de estudos, talvez não tanto esforço como exigia, e muitos gestos subjugados a uma doutrina familiar infeliz e um desgosto crescente por tudo que me cerca, depois de tantas coisas estarei livre. Meu plano é simples, agradeço aos meus pais, eles me puseram no mundo e me sustentaram até a maioridade. Da iniciativa deles de sempre me mostrar a importância do estudo, e nunca questionar ou poupar economias quando se falava no meu futuro. É com esse simples gesto, facilmente comparável ao osso sendo jogado para o espaço em “2001 – Uma Odisséia no Espaço”, jogando esse chapéu simbólico ao ar, pagarei minha liberdade.

Não questiono a ganância nas pessoas de que agora, colocamos a pedra base para construir um futuro brilhante, criar uma família perfeita, dois filhos, um emprego estável, uma casa bonita e aconchegante. Minha esposa servindo um jantar delicioso e meus filhos seguindo o exemplo de um pai bem sucedido. O mundo que nos cerca, cria essa agridoce realidade que isso nos realiza e isso nos completa como ciclo natural de nossas vidas. Tudo isso pra mim é amargo como aquele café que servia de combustível para horas de insônia auto provocada para vã tentativa de superação acadêmica.

A sanidade é totalmente relativa: a minha por exemplo será totalmente questionada. Logo que o sol se esconda no horizonte distante, tomarei talvez minha primeira atitude parcialmente humana, parte instintiva e primal, como os animais devem reagir quando acuados e parte causa de um processo longo e tortuoso o qual chamamos: vida na sociedade moderna. Que não tenho apego por essa vida sem razão, nunca escondi, que me identifico com grandes canalhas que esbofetearam nossas faces com pequenos milagres em forma de arte também é óbvio. Daí veio meio gosto pela literatura ou pelo teatro. Também desse gosto masoquista pela auto flagelação e exposição de minhas fraquezas surgiu a necessidade crescente desta fuga.

Antes de lhes contar os acontecimentos deste dia marco em minha jovem vida, devo lhes situar um pouco melhor em qual situação me encontrava; naufrago e perdido nesta ilha chamada São Paulo. Nasci em berço de ouro, meu pai, executivo, grande empreendedor. Um homem habilidoso, veio do outro lado do oceano e batalhou seu lugar nesta terra selvagem. Criou uma empresa de eletrônicos no banheiro de sua casa. Viveu amores, brigas e sucessos. Grandes sucessos. Minha mãe, humilde mulher do campo. Cresceu numa cidade menor que uma igreja evangélica e foi jogada ao mundo por uma família graciliana que fugiu do bucólico lar rumo ao sonho televisionado por novelas e telejornais ditadoriais. As linhas incertas desta grande peça que ainda está sendo escrita a bilhões de autores anônimos colocou os dois juntos, cresceu um sonho comum, e nasceu uma criança afortunada.

Posso dizer que nunca me faltou nada, e que tive a dita infância invejada por todo e qualquer jovem desta cidade da garoa. Vivi a revolta do grunge, a paixão byroniana pela vizinha do condômino em que cresci. Fiz amigos que representavam tudo para mim. Transei, me fudi, fui um sozinho. Me distanciei. Me revoltei e virei o bobo da corte de uma escola cruel, onde a doutrina de ser ser humano é inserida em nossas cabeças como nas mais doentes visões de ficção científica. Paguei caro por ser diferente. Por muitas vezes joguei a toalha e deixei essa correnteza branda e constante me levar em frente. Busquei saída de diversas formas, no Rock & Roll selvagem. Toquei guitarra como um deus dourado dos anos sessenta. Deixei o cabelo crescer, fumei maconha e experimenta altas viagens. Me joguei na vida perdida. Virei um vagabundo perdido na noite suja que uma cidade grande pode oferecer.

Isso não me satisfez em nada. Me voltei para os estudos. Como quem muda de canal, deixei de lado a revolta e aceitei a enrabada que tomava dos homens no poder. O pó branco que escorria de um nariz empinado era passado. Entrei na mais conceituada e prestigiada faculdade do Brasil. Estudei, trabalhei, e virei um herói da classe universitária. Fiz trabalho comunitário, achei uma mulher perfeita. Namorei e era exemplo de um perfeito fantoche do que a sociedade precisa. De pesadelo de meus pais, virei sonho e papo para os jantares regados de hipocrisia e falsa moral. Um sorriso cênico e paciente estampava meu rosto, ainda que soubesse a respeito do caminho que assumiria era complicado demais. Uma gratidão silenciosa e confusa me prendia a ao menos entregar um presente de ouro aos meus procriadores. “Obrigado mamãe, obrigado papai”. Lembro-me de ter dito com tanto gosto isso nessa manhã antes de vir para a formatura. Depois disso tomei banho e recordo-me de não sentir o gosto dos cereais misturados com iogurte. Não me irritou o transito desproporcional de uma cidade a beira do caos. Caminhei livre de culpa, assim como um condenado redimido caminha para a cadeira elétrica. Com a diferença que eu sabia que era apenas um rito de passagem. Porta para uma jornada em busca de algo que perdera junto com a inocência anos atrás. Um questionamento pessoal e investigatório em busca do eu selvagem.

Ainda vou contar com mais atenção a respeito desses personagens de importância inquestionável e relevância duvidosa. Porém agora que o Reitor parece acabar seu discurso aonde as palavras responsabilidade, orgulho e futuro soaram como conquistas dignas de guerras napoleónicas, preciso cumprir as ultimas instruções da etiqueta social. Com um sorriso mais sarcástico que o Coringa, meu barrete voa rumo ao sol e logo abraço ilustres desconhecidos, desejo do fundo do coração um futuro brilhante e boa sorte. Logo me vejo sob o olhar orgulhoso dos dois que me trouxeram ao mundo, e de canto vejo o olhar sensual e cartomante de minha namorada, inegável mãe de meus futuros filhos e perfeita mulher de uma família feliz e harmoniosa. Mal sabe ela que estou prestes a estragar todos esses planos.

Depois de festejar, parabenizar e ser parabenizado por ser dono do mundo, pelo menos por alguns minutos. Me vou ao banheiro, tremendo tomo meu calmante e respiro fundo, molho minha nuca e meu rosto. A imagem do espelho se torna extremamente nua e ameaçadora, sei que não tenho volta. Preparei essa partida durante anos, o carro estava aonde deveria estar. Minhas malas prontas. Levaria o mínimo. Volto para a festa. Dou um ultimo e caloroso abraço em meus velhos. “Obrigado por tudo, mesmo”. Minha mãe chora, ela sempre foi mais emotiva, meu pai duro feito rocha aprendeu a se defender das emoções e mesmo assim tinha os olhos vermelhos e pesados de lágrimas contidas. Minha namorada. Admito que aprendi a gostar dela, uma sensibilidade além da média medíocre. Um talento imensurável de lidar com outras pessoas. Claro, um sexo maravilhoso, e momentos compartilhados de forma mágica. Até pensei em leva-la algumas vezes. Mas não, essa busca era minha. Do mesmo jeito que fiz a barba com convicção nesta manhã, a abracei, tomei seus lábios uma ultima vez. O meu libido, disparou e ansiava mais do que nunca uma ultima transa com aquela pequena musa. “Obrigado por tudo querida, sem você este dia nunca teria chegado. Espero que daqui pra frente, tudo que conversamos e planejamos de alguma forma ou de outra venha a se realizar.” Nosso abraço foi longo, sentia o orgulho que ela me ostentava e a forma invejada com a qual muitos nos dirigiam olhares. Naquela hora, desejei do fundo de minha alma tímida que ela fosse feliz.

Os últimos itens da minha lista de afazeres estavam se aproximando, passei em uma instituição financeira aonde assinei os documentos e doei toda minha poupança para um projeto que visava levar a arte para as comunidades carentes. Me machucava saber que parte desta grana sumiria na sujeira que é essa política que mancha cada vez mais a dignidade de uma nação. Mas sabia que por menor que fosse o percentual realmente utilizado nesta obra já seria o bastante. Semanas antes tinha sacada cerca de dois mil reais, inclusive já havia realizado algumas compras, um equipamento de som mais profissional para colegas da minha quase famosa banda, que na realidade nunca saíra de um quarto sujo de Pinheiros. Também dera um jeito de melhorar os recursos de meu grupo quase lírico de teatro.
Agora a chave girava na ignição e ninguém, nem ao menos eu, tinha idéia de onde iria parar. As rodas giravam e deixavam o asfalto para trás. serpenteando o rio morto que cortava a cidade feito ferida exposta em pele já idosa, joguei meu telefone móvel no rio ao primeiro toque de alguém que percebera minha ausência. Logo estaria deixando a realidade adestrada para trás. Abri o vidro, os falantes tocavam a guitarra de Keith que representava perfeitamente a boêmia de uma vida de excessos. Os Stones me soavam ar fresco e sempre me impulsionavam rumo ao abismo do desconhecido. Esse tipo de música pede ar fresco, e a cidade que ficava no passado já estava distante o suficiente para que o ar se tornasse puro e com cheiro de novidade.

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