sexta-feira, setembro 28, 2007

Estamira (2004)

Direção: Marcos Prado (Produtor de Ônibus 174 e Tropa de Elite)

Mesmo sendo um documentário de 2004, é eterno, Estamira está em todo lugar.

A primeira impressão que temos ao começar a assistir esse documentário é de estarmos diante um fotografia soberba; o cineasta captura alguns momentos de um cotidiano diferente, em tomadas mais do que bem feitas.

Primeira porrada é a loucura aparente de Estamira: ela começa a despejar alguns conceitos que fazem agente ficar de queixo caído, tudo é extremamente fora do comum e muitas vezes irracional, só podemos levar a crer que se trata de uma mulher fora de sanidade; talvez seja uma justificativa, o tempo que ela passa em meio a tanto lixo tenha levado-a a este estado. Porém o documentário vai se desenvolvendo e as palavras vão ecoando de forma impressionante com vários cenários. A rampa, um aterro de lixo no Rio de Janeiro, nos leva a profundas reflexões a respeito da falta de consciência que a humanidade tem a respeito do próprio lixo. Estuprando a Terra e consumindo todos os seus recursos como se não houvesse o amanhã.

Mesmo em um ambiente tão desumano e sem a menor condição aparente de vida vários gestos de compaixão e fraternidade são mostrados. E as palavras muitas vezes incoerentes de Estamira começam a fazer um assustador sentido, considerando todo o plano de fundo que vem sendo proposto. De fato ela é doente, algum problema mental. Suas alucinações variam entre coisas místicas como o fato de acreditar ser uma feiticeira até o ódio profundo que sente pelo catolicismo. Ela de fato jura possuir poderes superiores, e mesmo sentindo fortes dores culpa a um “controle remoto”.

Então mudamos um pouco o foco e começamos a conhecer a história pessoal de nossa protagonista, sua filha, seu filho (um fanático religioso), sua filha perdida, o abandono de seu marido, os estupros e o quanto ela sofreu, o quanto ela se frustrou com suas crenças. Sua loucura começa a ser coerente e a cada vez mais tocar-nos de forma profunda. Entendemos a mistura de pensamentos e memórias que existe na cabeça dela.

Apesar de tudo isso ainda vemos uma mulher feliz e satisfeita. Provavelmente é uma ilusão, mas sua vida é colorida, e o cineasta teve uma sacada genial ao usar o preto e branco e o colorido para diferenciar momentos pessoais de momentos mais amplos.

Então começamos a pensar: ela está em uma realidade tão depressiva e sem futuro (comparada a nossa), e tudo o que ela fala sobre a vida, o futuro, a política, a religião, suas crenças e perspectivas... pensamentos de uma mente doente, fazem muito sentido para nós. Chega a ser até revelador. Provavelmente o mundo é louco, e no início Estamira afirma: "A minha missão, além de ser a Estamira, é mostrar a verdade e capturar a mentira". Estamos todos vivendo em um caos e Estamira, que está vendo tudo de fora do sistema econômico, está alertando a todos.

Ou mais triste ainda, estamos todos tão perdidinhos em nossa patética vida vazia e padrão, que aceitamos acreditar em qualquer um que diga que pode nos salvar.

Nota: 10/10

O país dorme.

"- Que absurdo, essa robalheira no governo. Que coisa mais horrível."

Cinco minutos depois.

"- Meu filho passou no concurso público, bom que agora é só mamar nas tetas do governo e nessa eu descolo ainda um pé de meia - risada estridente - é a melhor coisa a se fazer nao?"

É duro acreditar em um país que não se revolta pela corrupção, apenas tem inveja de não estar no lugar do corrupto.

"- Quieto filinha, deixa mamãe assistir a novela, depois você me conta sobre essa passeata não sei o que aí."

terça-feira, setembro 25, 2007

Um vagabundo de classe.

O groove do Jazz de Coltrane embalava o sono de Kim depois de horas retorcendo metal morto para construir uma estrutura miníma para lhe proteger de uma eventual chuva. Aquele garoto, com cara de homem que caíra da árvore de muito esperar, mostrava as contradições claras em sua ideologia Kurtiniana, viver intensamente e morrer rápido, que os céus tenham piedade. Seu tênis nike já havia percorrido muitos quilômetros a mais do que qualquer outro irmãozinho teria feito, sua calça jeans desbotava e misturava o azul fraquejante com o escuro das noites dormidas no chão, usava uma regata velha rasgada no pescoço para respirar melhor e estampando no peito seu gosto refinado; “Band of Outsiders”, ainda usava o suspensório que havia roubado de um amigo seu, queria ser chique apesar da sujeira que impregnava o resto das vestimentas, mas seu grande trunfo era o chapéu de copa baixa que havia comprado por cinco contos de um mendigo – mesmo tendo duas ou três manchas, era perfeito, lembrava uma figura grotesca saída de algum conto obscuro de Tenneessee Williams – e assim se esparramava em um sofá velho, que achará na porta de uma casa e levará para seu cantinho nos trilhos da antiga estação de trem abandonada, a música vinha da antiga e moderna vitrola que funcionava com pilhas, era uma verdadeira luta achar pilhas pra ouvir uma canção inteira.

Acordou.

Era manhã e o sol queimava impiedosamente a batata de sua perna, o que lhe não lhe parecia de todo uma má idéia, a fome lhe atormentava a anos e um suflé de batas a parisiana seria um pedido dos Deuses. Bocejou algumas vezes, coçou os olhos, coçou o nariz e buscou em sua velha mochila – velha de guerra – sua desgastada escova de dentes, a seco mesmo realizou o ritual que não necessariamente limpava os dentes, mas sim limpava a mente da insanidade da solidão. Ele tinha mais medo da solidão do que da própria morte. Buscou em sua sacola de feira uma banana suculenta que lhe fora presenteada. Tinha um pouco de pimenta também, nada melhor, banana com pimenta no café da manhã, padam padam padam, cantava com entusiasmo enquanto dançava categoricamente com seu guarda-chuva quebrado e abocanhava mais um pedaço de seu desejum. Sabia ter classe, buscava a dança em “Cantando na Chuva” e a canção de sua musa francesa Piaf. Era uma música bonita, cantava quando feliz, ou resmungava quando triste. Padam, padam padam...

Caminhava rumo a mais um dia. Mas de forma alguma seria um dia qualquer. Todos os dias eram dias únicos, afinal era uma longa trilha até o anoitecer, que era o amanhecer para sua vida boêmica. O centro da cidade o chamava, iria se encontrar com a ruiva do parque, uma vagabunda de classe que vivia nos seus moldes, e também degustava dos prazeres do jazz com pimenta e da culinária francesa tragada dos restos da burguesia robótica. Os dois curtiam um romance curto e breve, sabiam que duraria três ou quatro dias, assim seria eterno na memória de cada um. O sorriso amarelo estampado no rosto de Kim não afastava as pessoas de pata que corriam em seus trilhos malditos do dia a dia, mesmo tendo a aparência de um insano vívido vagabundo, sua faceta sorridente não demonstrava qualquer sinal de maldade, coisa rara nas carancas monstruosas que desfilam em alegorias fantasmas nas grandes avenidas desta capital.

“ - Olá, seu Pepe, tem jornal de ontem?! O que aconteceu com aquele filha da puta no congresso? Então é verdade? O seu Pepe me arranja uma moeda, vou comprar uma rosa pra minha namorada. Vale se Pepe. Gosto quando as coisas vão bem, é sinal que os passos devem ser mais firmes..”

Sentou no banco da praça cruzou as pernas, e sacou do bolso da calça um pequeno espelho quebrado, no qual já tinha se cortado inúmeras vezes, mas agora já havia domado o danado. Verificou os dentes, todos ali, e penteou o cabelo, meio duro, não saiu do lugar, mas melhorou, guardou o espelho. A leitura.

Continua... ou não...

segunda-feira, setembro 24, 2007

La Môme - Uma Vida em Rosa (2007)

Direção - Olivier Dahan (Ghost River que é muito bonito.)

E o Oscar de melhor atriz vai para Marion Cotillard pelo filme La Môme. Marion quebra várias barreiras e faz uma protagonista perfeita para este filme que ousa, com maestria, contar a vida da cantora francesa Edith Piaf. Um filme que acabou por me pegar totalmente surpreso, não havia nem sequer ficado sabendo da produção dele nem nada, quando vi já estava assistindo essa maravilha.

Creio que o título no Brasil será Uma Vida em Rosa que seria a tradução para o título internacional La Vie en rose. Os grandes destaques seriam a história de vida desta cantora que influenciou gerações e a atuação única que Marion conseguiu realizar neste filme. Seus 140 minutos passam voando enquanto assistimos de forma mão linear, porém de muito bom gosto, a trajetória desta conturbada estrela francesa. A direção é firme e mesmo fazendo diversos saltos cronológicos mantém o clima perfeito para cada cena sem perder a força sentimental e sem cair em momentos enfadonhos.

A trilha dispensa comentários obviamente e a fotografia tem ótimos momentos. Uma grata surpresa para quem gosta de filmes com biografias musicais tais como Ray ou Johnny & June. Deve pintar em breve nos cinemas nacionais. Acredito que venha a ser uma das atrações da mostra de cinema de São Paulo.



Padam! Padam! Padam!

Aborto Mental II

Algumas pernas longas em demasiado tem sentimento em falta.
Assim como a modelo magrela se preocupa no desfilar
Nem a cachaça salva algumas situações
Pedras, caco de vidro
Cobre a tua cabeça e sai
Afinal é perigosa a tentação da bondade
Turbilhão e furacão
Corpo jogado feito saco de rabanetes na parede
Sem valor e sem conteúdo
Desespero pra ser o ('um)
Amargura para ser como o ('um) outro.
Palhaço também tem alma
Alma?
E eu?
Clara e a depressão da casca
Viva ao hipocrismo social democrata
A espera do que?
Que merda de lugar é esse?
Abaixo a burguesia! Se não sou como eles, que morram!
Que morram por ter corrido atrás enquanto eu cheirava cola.
Que morra a vaca que me alimenta,
mas que viva o moleque que me da a erva
Erva que me salva da viril tentação do pico
Mansão, menção ao rabo de largatixa
Prostituta no café da manhã
Dublê de mim mesmo
(In)Terra Nostra
Ou império decadente?
Grito de palavras perdidas
por ideias antigos
por amores frouxos
por dinheiro patético
cheiro de carne podre
de sorriso amarelo
gosto de sangue com pimenta
Sim, senhor!
O relatório as 2h.
O emprego.
Antes vivo do que....
vivo?

domingo, setembro 23, 2007

À Prova de Morte - Death Proof (2007)

Direção – Quentin Tarantino (Kill Bill, Jackie Brown, Pulp Fiction e Cães de Alugue)

É complicado falar do Tarantino levando em consideração que ele é um cineasta quase que único na indústria cinematográfica. Desde o início de sua carreira primou em realizar obras com referências obscuras, dialógos típicos e visual muitas vezes de filmes de baixo orçamento, o que não deixa de ser mais uma de suas explicitas referências. Desde o maravilhoso 'Cães de Aluguel' passando pelo fenômeno cult 'Pulp Fiction' e chegando a obras mais recentes como 'Kill Bill Quentin sempre soube dosar muito bem o que queria com seus filmes. Em 'À Prova de Morte não poderia ser diferente e toda a intenção de recriar o clima de um terror B aliado a clichês de personagens que ao mesmo tempo cheiram coisa nova estão ali.

Porém antes de falar do filme, deve se comentar que na verdade ele é um segmento do filme Grindhouse, que foi feito em parceria ao seu amigo Rodriguez (um diretor que ainda não me fisgou). A idéia do projeto era reviver as antigas sessões de filmes B, aonde se passavam dois filmes seguidos, porém depois do projeto o filme de Tarantino foi reeditado e lançado em sua versão completa e é desta que estou escrevendo.

A história é simples, um dublê pra lá de estranho, com uma tremenda cicatriz no rosto e um carro um tanto quanto bizarro chega a uma pequena cidade do Texas para matar um grupo de garotas sem qualquer motivo aparente, ele usaria o próprio carro para mata-las. Simples como isso, e cativante como poucos. O filme prende sua atenção do começo ao fim, seja com os dialógos absurdos ou as milhares de referências que saltam aos olhos dos mais atentos, sem desconsiderar a trilha sonora pra lá de maravilhosa, o que já é característica nos trabalhos deste diretor.

Não vou contar mais da história pois ela se desenrola de forma interessante e na segunda metade do filme temos uma nova injeção de animo. Pontuando alguns detalhes, esse é o primeiro filme que Tarantino dirige a fotografia, e o faz com maestria, os efeitos de película antiga, os cortes estranhos, as cores da segunda parte, as tomadas de pulo com carro, tudo foi feito quase como uma pesquisa saudosista a grandes filmes do passado. O elenco está muito bem, Kurt Russell nunca esteve tão genial depois de Fuga de Nova Iorque. Forte concorrente a melhores do ano no quesito diversão.



A fantástica cena do lap dance, creio que não prejudica muito na história assistir, porém aviso que é algo do meio do filme:

sexta-feira, setembro 21, 2007

Tropa de Elite (2007)

Diretor - José Padilha (do interessante Ônibus 174 e roteirista e produtor de Estamira)

O maior sucesso da pirataria nacional dos últimos anos estreia hoje nos cinemas. Tropa de Elite, filme nacional sobre o esquadrão especial da polícia carioca, já é conhecido do público a bastante tempo quando vazou uma cópia em perfeito estado e começou a circular pelo comércio alternativo brasileiro. Como um viciado em cinema não poderia deixar de fazer já conferi e trago aqui uma pequena crítica.

O cinema nacional em geral é algo que assusta tamanho a falta de regularidade em títulos de primeira linha. Não diferente do resto do mundo, creio que em qualquer lugar existam filmes bons e ruins, porém no nosso caso o que mais me assusta são erros de base, é uma falta de conceito geral que assombra grande parte dos cineastas. Padilha não diferente do que muitos, cometeu uma série de erros triviais e nos trás um filme apenas razoável. Admito que não assisti o Ônibus 174, porém já estou providenciando, agora o documentário Estamira que teve colaboração direta foi o que mais me empolgou a assistir este filme. Se em Estamira estava um dos melhores documentários que eu já vi, parece que nada foi aprendido e o cineasta deu alguns passos para trás.

O grande problema é a falta de um roteiro de verdade, falta dos atores fazerem um trabalho de criar todo aquele novo universo a ser filmado. Com exceção, talvez, do Wagner Moura que demonstra um trabalho mais detalhado, com algumas idéias interessantes e um claro desenvolvimento, o resto é um monte de caricaturas jogadas a esmo em uma trama bastante simples, que busca uma certa inovação na maneira de ser contada, mas apenas consegue cair em maiores clichês.

Não que tudo esteja perdido, admito que me interessei em saber a história do início ao fim e me diverti por diversos momentos, porém a falta de um toque de arte transforma tudo em quase algo documental ou assim podemos chamar um quadro especial do fantástico. Depois de belíssimas produções como Cão sem Dono, fica difícil engolir algo assim. Cidade de Deus já ostenta o título de Cult afinal lançou diversas possibilidades que deviam ser exploradas de forma mais delicada, e não como uma referência vazia. Aos que procuram assistir algo nacional, assistam 'Santiago' (leiam a postagem do Aiton) ou aguardem o filme sobre o livro da Clarah Averbuck, 'Nome Próprio'.

quinta-feira, setembro 20, 2007

Blur - Blur (1997)

Cavalos trotando pra longe se transformam em uma safada guitarra distorcida e assim começa esse disco que esbanja Britpop da melhor qualidade. Que o Blur é uma banda das mais importantes da década de noventa e deu um novo animo ao cenário britânico que vinha da ressaca das intermináveis festas da Hacienda, não há dúvidas, que atire a primeira pedra quem nunca gritou Uhuuuuu (pífia tentativa de remeter a Song 2). Beatles, Rolling Stones, Nick Drake, Led Zeppelin, The Who, The Clash, Sex Pistols, Joy Division, Depeche Mode, The Police, The Smiths, The Stone Roses, Oasis, PJ Harvey e Radiohead são apenas uma parcela, mais conhecida, das bandas que saíram da terra da Rainha. O que existe de especial então neste quarteto? Primeiramente a incansável briga que travaram disco a após disco com o Oasis. Algo que remetia quase que diretamente ao Beatles x Rolling Stones, talvez o posto de pedras rolantes seria dos irmãos Gallagher e o quarteto de liverpool representado pelo Blur, brincadeiras a parte, uma repetição da história mostrava novamente duas bandas dividindo opiniões pelo mundo. Em segundo lugar essas duas bandas foram responsáveis por grande parte dos grandes hits britânicos da década, talvez levando ligeira vangatem o Oasis no quesito emplacar músicas na parada.

Agora a decisão pelo disco auto intitulado foi um tanto quanto difícil, competir com trabalhos como Parklife e The Great Escape não é tarefa fácil. Talvez o que tenha pesado a favor deste trabalho foi o fator que ajuda na escolha dos melhores vinhos também, o envelhecimento, foi um trabalho que ganhou novas texturas e um novo sentido pra mim e hoje é o que mais admiro deles, seguido do fabuloso 13.

Como de costume evito fazer uma crítica faixa a faixa ou explicar como o som da guitarra com efeito xyz no minuto x da música me faz achar a obra genial. Vou pelo que o coração diz: é um disco que gosto de ouvir do início ao fim e como todos os outros até agora, é uma recomendação de algo que me agrada muito. Espero que gostem.

Destaques: Beetlebum, You Are So Great, Song 2, Look Inside America, On Your Own. e Strange News From Another Star.



Beetlebum ao vivo na época do álbum 13:

segunda-feira, setembro 17, 2007

O Círculo de Giz Caucasiano - Bertolt Brecht (1945) - Manuel Bandeira (1963) - Cia do Latão (2006)

Este título imenso nada mais é do que a justificativa desta maravilhosa peça de teatro que está em cartaz na cidade de São Paulo. Um dos maiores dramaturgos modernos, traduzido por um dos maiores poetas brasileiros tendo sua peça montada por um dos melhores grupos de teatro quando falamos em termos de pesquisa, história e atores. Porém vamos com calma.

Brecht é um dramaturgo alemão famoso por suas peças com fortes críticas políticas e humanas, grandes exemplos não faltam: Um Homem É Homem, A Ascenção e Queda da Cidade de Mahagonny, A Alma Boa de Sun-tzu e muitas outras. Em o círculo de giz caucasiano o mote é que durante a guerra na Georgia alguns camponeses fugindo deixaram para traz um fértil vale, que quando desocupado foi logo invadido e defendido aos dentes por outro grupo de camponeses, que cuidaram do local e inclusive trataram de melhorar criando um sistema de irrigação. A questão é depois da guerra quem é o legítimo dono da terra? Os antigos ou os novos? Sentados para discutir isso, começa uma peça dentro da peça, onde se ilustra essa disputa. Este novo épico.

Manuel Bandeira fez uma tradução impagável e dele nem me cabe falar, é um dos gênios pouco reconhecido em nosso país.

A Cia do Latão é um um grupo de teatro que realiza uma pesquisa aprofundada no “jeito Brecht” de fazer teatro. Já montaram no passado “Santa Joana dos Matadouros” e “Ensaio sobre o Latão” e agora nos presenteiam com essa montagem emocionante. Sim emocionante é a palavra correta, a pela que levou esse aqui as lagrimas duas vezes, está com um elenco de ponta, todos com sua importância e talento e pró do pai palco. Como é emocionante ao final ver os atores agradecendo ao palco. Vale o comentário que a atriz Helena Albergaria simplesmente me deixou até agora sem palavras, ela foi de longe o que de mais tocante eu já vi em um palco.

Quem gosta de viver sentindo que o coração pulsa no peito por mais sentido do que apenas o levar o sangue por ai. Assista.

Aonde?
TUSP - TEATRO DA USP
Rua Maria Antônia, 294
Horário: Sextas e sábados, às 21h e domingos, às 20h
2ª TEMPORADA: 14 DE SETEMBRO A 28 DE OUTUBRO
Local: TUSP -Teatro da Universidade de São Paulo
Endereço: Rua Maria Antonia, 294
Preço: R$ 20,00 (inteira) R$10,00
Duração: 3 h 15 minutos (195 minutos)
Lotação: 136 lugares
14 anos

O Fabuloso Destino de Amélie Poulain - Le fabuleux destin d'Amélie Poulain (2001)

Direção – Jean-Pierre Jeunet (A Very Long Engagement)

Existem alguns filmes que retratam de forma tão harmoniosa a sociedade e tantas vezes com uma delicadeza ímpar que acabam por si sós criando uma nova e divertida forma de encarar essa viagem. Amélie não é obviamente o primeiro nem será o último filme a mostrar pessoas deslocadas, alias esse é um tema que se repete ano após ano no cinema. Porém alguns tocam em um pontinho chave das pessoas e se tornam clássicos imediatos. Com essa pequena pérola de Jean-Pierre não é diferente, aclamado no mundo todo, com diversos prêmios, foi um dos maiores sucessos do cinema francês atual.

Amélie, nosso Homero moderno, é uma simples e humilde garçonete ela teve uma infância bastante distinta e pode se citar o pai que era médico e só se aproximava para realizar exames médicos e seu peixinho que sempre tentava suicídio. A história aqui começa quando Amélie se muda para um novo apartamento e acha uma caixinha com alguns objetos sortidos. Passa então a realizar uma busca pessoal pelo suposto dono desta caixa. Uma busca quase que impossível se tratarmos do caso que estamos em Paris.

A forma como tudo é levado e a humanidade que Amélie carrega são os pontos altos, é impossível não se apaixonar pela meiga Audrey Tautou (Código da Vinci e o Albergue Espanhol) ou se encantar com a bela fotografia e narrativa do filme. A atriz dá um show a parte, e traz uma personagem encantadora e única. Chegando até a virar adjetivo, algumas garotas já me falaram querer ficar mais ameliézada.. Eu agradeceria, se a todos tivêssemos metade da sensibilidade carregada nesta personagem, estaríamos em um lugar muito melhor.

É um dos meus filmes preferidos da nossa atual década e compete com grandes do cinema de igual pra igual. Assistam caso não tenham tido a oportunidade.



Outro destaque é a trilha sonora, Yann Tiersen é um músico francês que realiza um trabalho muito interessante, ele além de compor belíssimas trilhas (Adeus Lenin!) ele realiza apresentações ao vivo com uma intensidade muito boa. Confiram a versão ao vivo do tema de Amélie:

quinta-feira, setembro 13, 2007

The Arcade Fire - Funeral (2004)

Como tratar temas tais como a morte, a solidão e a perda? Temas que conspiram normalmente para um trabalho denso, pesado, com um clima cinza e guardado para manhãs chuvosas de sábado. Isso seria o obvio claro, neste primeiro trabalho desta trupe canadense eles realizam praticamente um catarse e expurgam todos os demônios com um disco cheio de energia, belíssimas melódias e muita criatividade.

Funeral é um disco atemporal, poderia ter sido lançado nos anos sessenta e seriam vanguardistas, lançado hoje é um disco ainda sim vanguardistas somado ao saudosismo que vemos em claras referencias a grandes bandas dos anos 60, 70 e 80. Com grande ênfase na década perdida. “Someone told me not to cry”. Um disco antológico que já ficou para a história.

Eles já despertaram figurões como David Bowie e Bono Vox, fizeram um show delirante no último Tim Festival, revolucionaram a forma de mostrar seu trabalho, soltando vídeos aonde a banda tocava dentro de um elevador ou faziam confusão misturando as músicas do novo trabalho e soltando algumas na internet. Lançaram um segundo trabalho bastante autoral e com muita personalidade mostrando terem bastante noção de onde querem chegar. Não preciso me delongar mais para dizer que considero essa uma das grandes bandas da atualidade.

Destaques: Neightboohood #1(Tunnels), Neightboohood #2 (Laika), a belíssima Crow Of Love e Wake Up.



Para quem quiser ler uma postagem interessante sobre o outro disco da banda. Cá está.

Momento fã:
Uma apresentação com a faixa Neon Bible do mais novo álbum seguida da poderosa Wake Up em uma versão linda, 15 minutos que valem a pena:

quarta-feira, setembro 12, 2007

Ladri di biciclette - Ladrão de Bicicletas (1948)

Direção: Vittorio De Sica (Shoe-Shine e Umberto D)

O cinema italiano sempre foi um de meus preferidos. Tudo começou com Fellini (leiam sobre o filme “E A La Nave Va” e depois veio uma fila de grandes cineastas que fui descobrindo com o tempo. Demorei bastante tempo para descobrir esse clássico do neorealismo.

A trama do filme é singela e tocante: Antonio Ricci é um desempregado que consegue uma vaga para trabalhar como colador de cartazes, bastava ter uma bicicleta, aí que Ricci parte junto ao seu filho Bruno em uma busca amarga e angustiante pelo seu meio de trabalho. É mostrado como a situação pós guerra deixou a Itália em um estado de caos, sem geração de empregos, com uma classe proletária sofrendo anos a fio sem geração de renda. Tudo é mostrado com muita sensibilidade.

A situação de desespero por um trabalho fica claro quando um funcionário do governo chega para anunciar algumas vagas disponíveis. A população não tinha preparo e as vagas necessitavam um mínimo de conhecimento, a situação fica tão sufocante que a vaga de colador de cartazes era algo nobre o que acaba levando Ricci a esse desespero em conseguir uma Bicicleta. Contar mais seria estragar. O final é estarrecedor.

terça-feira, setembro 11, 2007

The Beatles - Revolver (1966)

Foram mais de cem postagens para tomar coragem e escolher algum disco dos Beatles para entrar na minha discografia básica, a qual levaria para uma ilha deserta e todos essas alegorias em formas de clichês. Por que o Revolver? A resposta estava na minha cara durante o tempo todo, porque é meu disco preferido a uns quatro anos já, algo que sempre esteve em mutação, fez-se estável com esse trabalho definitivo. Rock, folk, jazz, música clássica, indiana... técnicas que a mais de quarenta anos ainda são vanguardistas e ouso dizer únicas, poucos artistas conseguem unir uma produção de tamanho nível a composições sublimes.

Taxman é uma composição do George (meu Beatle preferido) e abre o disco, um detalhe que poucos sabem é que quem sola na música é o Paul, tocando guitarra mesmo, e que solo! Eleanor Rigby dispensa apresentações, talvez seja a faixa mais conhecida deste álbum. Não vou comentar música a música pois comentaria absolutamente todas.

Da mesma maneira que o Kind Of Blue do Miles Davis redefiniu o Jazz, este trabalha do Fab Four moldou para sempre o que viria a ser o Pop Rock. Todas as referências e grandes inovações vieram daqui. Entrando um pouco na Beatlemania vale ressaltar que esse ainda era o auge do grupo como um todo, depois começaria a vir alguns desentendimentos e ainda viriam grandes discos claro, mas aqui ainda existia uma química muito forte entre todos.

Caso não esteja muito bem apresentado ao quarteto de Liverpool, este é um ótimo começo, escute do início ao fim. Perfeição rara.

Destaques: tudo.



For No One (Minha música preferida, destaque para o Paul explicando que teria um solo de trompa no meio)

segunda-feira, setembro 10, 2007

Lavoura Arcaica - Raduan Nassar (1975)

Uma das maiores dificuldades que enfrento é responder a pergunta - “Mas é sobre o que?” - quando estou falando a respeito de um livro. É difícil falar sobre o que um livro é, pois é muito mais do que um tema, existe a forma que ele é escrito, a maneira que as palavras se movem pra te pegar. Lavoura Arcaica é um dos meus livros preferidos, sobre o que é? Respondendo de maneira curta e grossa: Sobre as vontades de um jovem deixar a vida que leva na fazenda da família. Creio que o livro é sim a respeito deste tema, e que por si só até não me diria muitas coisas. Agora quando entra elementos como a linguagem, o contexto histórico ou mesmo a abordagem sobre a família que o livro brilha por si só.

A linguagem é tão rica que eu costumo comparar com Grandes Sertões: Veredas do Guimarães Rosa (um dos meus escritores preferidos). Tudo parece um terrível e confuso fluxo de consciência a la James Joyce. Narrado em primeira pessoa de forma bastante elegante, é um dos grandes referências literários que levo comigo. O contexto é algo mágico, ele poderia ter acontecido a trinta e cinco anos atrás, ou a setenta anos atrás. Pois retrata um estado que povo rural foi levado, é um retrato detalhado do que passou pela alma de muitos Brasileiros, e sim pessoas do mundo todo, durante o êxodo rural. Gosto também de comparar o livro com a peça do Nelson Rodrigues, Álbum de Família, pois trás uma abordagem controversa de uma instituição pra lá de torturada e destroçada nos dias de hoje.

Em 2001 houve uma adaptação para o cinema, que eu ainda não tive a oportunidade de assistir, li em alguns textos a respeito e me despertou sempre bastante interesse. No “Verbo Transitivo_beta” tem um post (link aqui) bastante interessante. Vale dar uma olhada, é um ótimo blog.

quinta-feira, setembro 06, 2007

O Espelho

Deslocado. Locomover-se é um dos primeiros instintos desenvolvidos pelo homem, e é também um dos que fazemos sem o menor raciocino evidente. Nicolas, sempre achou ter personalidade e andar com objetividade, até se sentir tão deslocado que pouco ou nada fazia sentido. Nada o fazia querer viver mais do que o sentido de se achar no local correto e na hora certa. O sentido máximo estava em ser preciso. Ou era até perceber que nunca esteve tão perdido como nesta noite sem conhaque. Seus amigos riam e bebiam como se fossem os deuses do mundo, em breve se levantariam para vangloriar-se de sua potência, se auto afirmando deuses modernos. Os excessos eram encarados como prova de força, como ritos de passagens a serem superados a cada minuto. Não existia uma dose a menos ou uma noite a menos. Era tudo e nada sempre ao mesmo tempo, silêncio em muito barulho para mostrar o quão seguros de si podiam ser. Nicolas sentia nojo disso, mesmo sorrindo e brindando ao seu futuro brilhante como o advogado mais jovem a se formar no país. Ignorava sua família, que tanto lhe disse que o dinheiro não era tudo, não passavam de um bando de vagabundos, fracassados que não queria encarar a vida de frente e vencer. Sim, ele nascerá pra vencer e prosperar, tinha o foco claro, usaria as vertebras de seu irmão como degraus se fosse preciso. Deboche, raiva, remorso, saudade, felicidade, cinismo e intensidade.

Infelicidade.

Veracidade de todos os que o cercavam agora em mostrar o real carinho, aquele que é ganho com esforço de quem busca como um espartano a glória usando a agressividade e voracidade que o dinheiro faz na mão humana; exatamente como o pedaço de carne faz na boca do cão faminto. Desejo reprimido. Tecido de uma raiva crescente por suas origens. Saudades do Pitu, seu único amigo, um cão vira lata que tinha classe de rei.

Um longo corredor, o chão era de madeira, velha, provavelmente devorada por cupins, o tapete velho e desgastado era incessavelmente limpado para parecer novo, sobre o disfarce de incensos o cheiro de falsidade impregnado em cada ornamento das paredes, lindos detalhes em mármore rosado e diversos quadros de Rembrandt. Uma mobilia imponente expunha pergaminhos de John Fante e Fellini, lembranças de quem enxergou além e nunca foi compreendido, expostos como trofeus. As luminárias de cinco em cinco metros iluminavam constantemente o ambiente e davam a racionalidade necessária para admirar cada falso brilhante que esbanjava luxo e tendencias suicidas.

De perto tudo se transformava, o quadro que maliciosamente parecia se entortar, o cristal que se aclamava por atenção ameaçando-se tacar das alturas, a tapeçaria que corroída demostrava a decadência, ou mesmo a porta ao final do corredor que imponente virava apenas uma... porta.

Nicolas caminhava tudo isso com objetividade logo saíra e logo teria o encontro com seus falsos apoiadores morais. A glória se aproximava, o caminho era longo mas sempre chegava-se a algum lugar. A maçaneta fria, o sentimento de rendição, lembrou-se: sua família passava fome em algum lugar, porém não era culpa dele, ele fez de tudo para salvar-se... eles que o seguraram... tinha abandonado também a doce Margarida que tinha reparado sua inocência em um momento de humanidade contida e reprimida. Precisava se concentrar, “- pro inferno esses pesos que me seguram, vocês não são nada para mim.”

Girou a maçaneta, devagar, queria saborear a vitória, sentiu cada mola estralando e se soltando para entregar a vitória aos que lutam e Nicolas era um lutador. A porta se abria devagar e ele sentia até o golpe seco do ar fresco, primeiro sinal de liberdade. Seus olhos não podiam acreditar, a visão era...

A porta se abrirá, quando menos esperava com uma convicção e força únicos. Nicolas se sentia uma criança, um garoto, inocente e cheio de dúvidas, buscou o sentido naquilo. Achava que um dia cresceria e se sentiria completo. O terror do segredo guardado pela porta o apavorava, nunca tinha estado cara a cara com isto.

O espelho.

quarta-feira, setembro 05, 2007

Chico Buarque e Gilberto Gil - Cálice Censurado.

Pior do que viver numa ditadura é viver na ignorância.

terça-feira, setembro 04, 2007

Máquina de Escrever Quebrada.

A garrafa de vodca vazia.
O som nostálgico da bossa nova torta do Nouvelle Vague.
Algo tão vago como o olhar das pessoas em um trem rumo a periferia as seis da tarde.
Desespero sempre tem seu papel fundamental no coração dilacerado de um jovem.
Mesmo quando o coração já está cansado demais até para se quebrar.
Quando os sentimentos ficam tão expostos que até o gosto da pra sentir na boca.
Ian disse, o amor vai nos quebrar novamente.
As vezes parece como um rio, agente pode conhecer, pode achar que sempre vai ser isso, mas quando colocamos o pé, agente percebe que o rio nunca é o mesmo.
Não existe um ciclo.
Da mesma forma que o ciclo não tem começo ou fim, o rio não tem ciclo.
E o Amor também não tem.
Nem que seja todos os dias de sua vida, cada amor é um único e você nunca irá vive-lo novamente.
Talvez seja isso que nos leve aos porões boêmicos dessa capital.
Em busca do ar viciado de vida falsa.
A batida afeta o cérebro e a alma.
O pico é a busca pelo novo.
É querer tudo e nada.
É do nada esperar tudo.
E do tudo fazer nada.
Nadar em tudo que é água
Tudo que é ar fazer água.
Fatalidades.
Como uma Charlotte em catarse ou um Drew em euforia.
Viciado na poeira sagrada que resta no final da noite.
Satisfeito com a insignificância que representamos ao todo.
Conformados com a situação do mundo, e nada empolgados em mudar.
A garrafa de vodca continua vazia.
O som se apaga.
A mente voa.
O coração afunda.
Uma segunda feira nunca foi tão azul.
Em pensar que falávamos de sonhos.
Aonde estamos?
Um sorriso de canto denuncia que a dança salva?
Você dançaria comigo?
Uma História Sem Fim.
Com o começo fatal do nascimento.
Nascimento de uma morte anunciada.
Seria este o meio?
Como você se sente?
Eu estou ótimo

Nineteen Eighty-Four - Mil Novecentos e Oitenta e Quatro (1984)

Direção - Michael Radford (O Mercados de Veneza e um filme chamado Dancing At The Blue Iguana que eu fiquei muito curioso de ver, alguem tem?)

Livro – George Orwell

Um mundo cinza, oprimido, sujo e destruído. Governado pela mão de ferro do Grande Irmão essa sociedade quase robotizada vive uma rotina uniforme, que começa desde os padrões comunistas de distribuição de bens até alguns flertes com a incansável vigia exercida pela policia alemã. Claro que o paralelo traçado com os fatos reais podem causar olhares tortos afinal é uma visão unilateral e extremista. George Orwell escreveu o livro em 1949, em um mundo que ainda sofria com resquícios do nazismo e tremia perante a onipotente Guerra Fria. Essa sociedade decadente que possui ministérios que controlam a verdade, sobre a premissa que quem controla e o passado, controla o futuro e muito além quem controla o presente, controla o passado. Ligas anti-sexo e uma construção de uma nova língua que iria erradicar o livre pensamento, retirando as palavras perigosas do dicionário. Ao mesmo tempo mostra uma classe proletariada que não tem força para brigar e de certa forma aceita a sua condição abaixando a cabeça, mas que ao mesmo tempo mantem o elo com os instintos mais primitivos e em muitos momentos parece mais feliz que a dita classe superior. As injustiças sociais também são evidentes, o dito partido interno, que só o alto escalão faz parte tem acesso aos produtos mais finos e especiarias que nem mesmo a classe média juntando dinheiro uma vida inteira teria alcance. O incrível é a capacidade que esse livro tem de se manter extremamente atual e a maneira como podem ser traçados os mais diversos paralelos sobre os mais diversos tópicos.

A adaptação para as telas é soberba e consegue capturar com extrema eficiência o clima do livro, traz imagens interessantes, inclusive apresentar soluções inteligentes para não manter o espectador perdido caso não tenha lido o livro. A atuação do John Hurt é precisa e não escorrega em nenhum momento. Mesmo os figurantes apresentam uma dedicação e imersão notáveis. Um filme que é basicamente levado pelo clima e por ideologias que levariam qualquer grupo de amigos a discussões infindáveis.

Um retrato frio e calculista que previu de muitas maneiras o rumo que poderíamos tomar. Se alguns acreditam na visão exagerada e fantasiosa de Orwell, outros dizem que ele foi até generoso e que a sociedade em muito já passou o nível desesperador aqui mostrado. Tanto o livro como o filme são importantes para qualquer pessoa que gosta de filosofar sobre possibilidades menos obvias.

segunda-feira, setembro 03, 2007

A Garota Sem Nome.

"Audrey Hepburn, como a atriz." disse a prostituta, pronunciando com gosto a última palavra, para um apanhado de músculos que ainda terminava de se vestir depois de quinze intensos minutos de prazer comprado. Ele deve ter reclamado porém Amanda não ligava muito, no fundo era muito esperta e adorava parodiar com os clientes: analisava o tipo do cara e buscava o nome que menos fizesse sentido. Outro momento especialmente saboroso para ela era a hora de receber o dinheiro, em geral adorava o ar de superioridade que sentia ao ver que o homem se humilhou e chegou tão baixo, quase rastejando por alguns instantes de prazer. Mesmo sabendo que não era uma mulher como as das capas de revistas de cosméticos, na real, fazia questão de não mostrar seu mais belo lado. Era quase como um conto de fadas, sempre desejou acordar, achar o príncipe encantado e aí sim levantar o véu da prostituta e se revelar a bela princesa trancafiada na torre. Sua pela negra era muito bonita isso ninguém negava, porém ainda arranjaria tempo, ela queria um sorriso perfeito ou mesmo um rosto de boneca de porcelana, coisas que nem de perto chegava. Se tivesse tempo de se cuidar melhor também teria um corpo mais em forma, mais isso ela faria algum dia para o príncipe.

“Vamos lá, mais uns três, e por hoje chega.” disse a si mesma enquanto se limpava no banheiro, apesar de fazer tudo que a profissão pedia, sempre se sentia imunda após o ato e com isto uma necessidade imensa de se limpar, por vezes na frente do cliente mesmo.

Desceu para o salão principal da casa, as luzes vermelhas piscando, a música alta e que não fazia mais o menor sentido, os rostos nulos e sem expressão, tudo a incomodava. O sorriso plástico cresceu no rosto e se mostrou radiante de alegria, tanto mostrava a felicidade que era mais um ato de desespero para esconder a tristeza profunda e encravada em sua pele. Como sempre se deixou guiar pelo automático escolheu o primeiro rosto nulo que parecia inocente e que não fosse pedir demais e foi até ele sentando-se no colo, como a mais ordinária das Lolitas, algo que nem Anita conseguiria realizar. Sentava e procurava tratar de excitar logo seu cliente, afinal quanto mais ativa a cabeça de baixo, menos sangue na superior e conseqüentemente o trabalho se tornava muito mais fácil. O hálito de pinga era tão forte que ela precisou se imaginar num campo de flores no interior em Pouso Alegre para resistir. Apesar das marcas claras de sofrimento e desgaste o homem era bonito, ou melhor, tinha seu charme: moreno forte, tinha os traços retos no rosto mostrando ao mesmo tempo uma beleza quase primitiva misturada com um olhar perdido e desolado, típico das grandes metrópoles. Ia ser como tirar doce de uma criança.

O homem se chamava Zé, e devido ao aspecto rústico dele e a pouca demonstração de intelectualidade do rapaz, ela escolheu, se chamaria “Elizeth Cardoso, como a Cantora”. Para sua surpresa o Zé abriu um sorriso malandro e começou a comentar o ótimo gosto dos pais dela. Pela primeira vez ela errara, os comentários do Zé já não faziam sentido, ela só se martelava a respeito da falta de sensibilidade que tinha em julgar o rapaz. Seguindo a risca todo o procedimento de sua cartilha trabalhista o levou para o quarto.

Quando entrava no quarto era o momento em que ela se desligava, era mais fácil. Seguia um passo a passou cuidadosamente elaborado por sua mentora. Lembrava-se como se fosse ontem o dia que, como uma menininha, entrara nesta casa. É fácil: “Eles não sabem o que fazer perante a mulheres com atitude.”. Primeiro passo: antes que ele possa querer ou pensar em algo, arranque as calças dele e caia de boca. Isso o deixará sem reação e bastante excitado, o que facilita e encurta o tempo de serviço que virá em seguida. Segundo passo: vá o levando pra cama e antes que ele pense suba nele e cavalgue como nunca, desta forma ele não vai aguentar muito e assim o trabalho acaba mais cedo. “Assim fácil fácil, não tem erro.” eram as palavras da Josiela Camargo, aquela velha puta safada que havia ensinado quase todos os atalhos da profissão.

Levantou-se e como o Zé permanecia estático depois daquela relação rápida e no mínimo intensa para um cara que não via um par de seios a muito tempo, a agora Elizeth resolveu ir se limpar, nem ligou de fechar a porta. Cantarolava uma velha canção do Adoniram, sobre o despejo na maloca. Pois o principal era isso, durante o primeiro minuto que botou os olhos em Zé, até o último segundo, ela era Elizeth e não mais ela mesma, aquilo era seu escudo, sua espada era seu sexo. Armada disto enfrentava a vida amarga e sonhava com o dia que largaria isto e simplesmente seria a princesa Amanda, amada por um príncipe e entregue a um romance Shakespeareano. O Zé ainda comentou alguma coisa do samba, mas não lhe fazia mais sentido, recebeu seu dinheiro, sentiu até um pesar diferente, como o pesar do ultimo aperto de mão, mas não ligou. Deixou a porta aberta pra a colega que vinha subindo com um velho barrigudo que provavelmente deixaria até a chave do carro e foi para o salão, desligando seus sentidos e seu coração para rumar em direção a um gringo e com o sorriso estampado no rosto e a ponta da lingua afiada disse: “Olá, sou a Mel Lisboa, como a atriz.”