Os tormentos em casa só se amansavam com a nudez da noite calada; pois é aí que deixamos a vigília finalmente ser vencida pelo sono, pesado cansaço dos intermináveis sermões de papai. Uma fúria contida, prestes a explodir ao menor desvio na linha tracejada que nós leva de hoje para amanhã. Isso bastava para trazer a loucura aos olhos dele, a inquietação ao corpo, as falas desmedidas de sentimento ou razão. O que lhes registro aqui aconteceu hoje, aconteceu no dia antes de ontem e acontecerá novamente sempre que o demônio cobrir os sentidos do chefe da casa, então tempestades desabarão novamente sobre aquele, outra hora tão calmo lar. Entrava furtivamente, descalço, como uma ladrão. Não era fácil prever as obscenidades que trazia tatuadas em seu corpo, muito menos de fácil compreensão a tensão disfarçada de um molejo gingado. Ele dizia nada, nós não dizíamos nada. Chegava a pensar que dessa vez seriamos polpados. Tão logo sentíamos a sombra da ofensa sobre nós, sentíamos a punhalada certeira que partia das palavras de papai. Descontroladas como uma ensandecida locomotiva, babava sobre nós o peso de todo uma nação esquecida. Tirava lágrimas de mamãe, que mesmo dura feito rocha, desabava e punha-se em joelhos, humilhada e destroçada por um monstro impiedoso e cruel. Só me restava, justo eu o caçula, ser mediador desta terrível personificação da destruição. Era comovente e me punha aos prantos ver que a razão, tão amada e motivo de tanto orgulho do patriarca, lhe faltava e eu enxergava sim, um velho assustado com o Câncer, também conhecido como vida, que lhe devorava o brilho dos olhos. Era triste, ver aquele, que em tempos de reis, era tão forte e destemido. Aquele que cruzou a nado oceanos, derrotou moinhos de vento, e resgatou a princesa do alto da torre. O grande rei do passado, entregue as traças destinadas a devorar as páginas da história. Ver perdido em tamanha tempestade, apenas um garotinho, amedrontado e em busca de carinho.
terça-feira, dezembro 18, 2007
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