Cinco e meia da manhã, os flashes dos jornalistas me cegaram e trouxeram lembranças de um passado urbano esquecido. Se eu soubesse que o maior erro é desperdiçar o desespero, teria aproveitado melhor a espinha sensível, o calor na palma das mãos e as borboletas no estômago. Havia pisado em solo brasileiro menos de doze horas atrás. Fui transferido de pronto para uma delegacia especial e logo se irritaram com a minha falta legitimidade. Sem documento, ironia estampada e nenhuma vontade de colaboração. Essa é a receita perfeita para um caos sem precedentes.
Nunca o sofrimento humano me pareceu algo tão aceitável. Não tinha mais clara noção do bonzinho e do malvado. Aquele político de merda, heroicamente me tirou do horrível cativeiro em que me mantinham em favor a um brilhante álibi político. Se tivessem perguntando minha opinião eu teria ficado lá pelo Chile mesmo. Essa vida sub humana que a cidade impõem é centenas de vezes pior.
Com o tempo aprendemos a deixar de procurar aceitação. De alguma forma obscura eu não merecia ser amado ou mesmo notado. E agora o que eu havia ganho era um foco inteiramente meu de atenção e exposição na mídia. “Por favor, estou realmente cansado, podíamos continuar amanhã, não?”. A resposta era quase sempre certeira, tapa na cara, cusparada no olho e xingamentos a balde. Eles queriam minha ficha. O anonimato era terrível. Viam que tinha certa cultura, que sabia falar... creio que assustava um pouco a idéia de que eu podia ser qualquer coisa.
Me divertia com os comentários de canto. Ele pode ser filho de político, diziam. Eu era como um monstro. Um alien capturado, porém totalmente nocivo e principalmente, desconhecido. “Vamos moleque, qual é seu nome, seus documentos, temos a noite toda, e vamos descobrir que porra que é você.”
Na real, a noite já escoava pelo ralo da manhã, e quando se deram por exaustos me jogaram numa cela qualquer e mandaram eu refletir se eu deveria colaborar, ou uma nova sessão de boas vindas seria gentilmente oferecida. Eu estava com meus momentos de paz contados. Em breve os jornais, a televisão, a internet jogaria minha cara a cada cinco minutos para o mundo todo, meus pais reconheceriam o filho perdido e tratariam de entrar em contato.
Se pudesse aproveitar, teria que ser agora, ou me entregaria a possibilidade de encarar a pacata vida beirar minha quase existência real e entregue a natureza humana. Fui o que quis ser e me entreguei a esse instinto latente que rasga meu peito como ferro em brasa. Não sei se tomado por inspiração devia cravar os dentes nessa primavera que se vai. Devo ter chorado, os flashes, Julia, doce Julia. Ela teria que enfrentar a dura realidade de descobrir meu paradeiro depois de ter sido abandonada feito rato no meio do nada.
Enquanto me serviam o rango podre, comida que não era nem digna de ser servida para os cachorros, anunciaram a descoberta de minha identidade. Descobriram meu curso superior, descobriram a minha morte. Como seria daqui pra frente? Me deixei levar pela onda, do que lembro são momentos fragmentados. Entrevistas na qual não respondia nada, tentativas frustradas de toda e qualquer rede de televisão de ganhar minha presença que já devia valer milhões. Queria entrar em contato com a Julia. Sei que depois de uns meses, meu caso virou assunto da política nacional, acabei caindo um pouco na sombra do sucesso. Deixaram de me procurar e meus pais me jogaram numa chácara no interior de São Paulo, colocaram dois armários para me vigiar, afinal haviam algumas restrições impostas pela justiça.
Eu precisava dar um jeito de sair dali, pé na estrada novamente, ir atrás da Julia, ir em busca de algo. Minha vida é uma busca, e o que me realiza é buscar, quero buscar tudo. A inquietação me jogava nas paredes daquele pedaço de nada no fim do mundo. Me fingi de peso morto, um filha da mãe vencido é muito mais perigoso que qualquer peso pesado. A chácara ficava realmente no meio do nada, eu digo, não estou exagerando. Uma estradinha de terra e mais nada. A rotina era a mais chata possível. Acordar, dormir e me manter fora de confusão. Enquanto o mundo brigava pelo caso do brasileiro sem nome, que agora já possuía identidade porém, para termos de audiência, o termo do brasileiro sem nome, era mais interessante.
Em breve daria um jeito de enganar esses dois e fugir dali, era só questão de tempo.
sexta-feira, maio 16, 2008
Em Busca do Eu - 11
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