sexta-feira, julho 04, 2008

Pedalava como se não houvesse amanhã. O asfalto sujo ficava pra trás, o vento me entorpecia os olhos, que atentos visavam só o além do próximo semáforo. Depois de um tempo pedalando a todo vapor, as pernas atingem um estado de dormência ativa, ou seja elas continuam a realizar seu único objetivo. Rodar. O guidão nessa velocidade treme, os braços firmes impedem que eu perca o controle e me acabe no chão duro e áspero. Quando atinjo essa velocidade minha vida se torna muito mais simples. Flashes de minha família, de meu pai e suas mãos sujas de gracha, de minha irmã e seu computador, de minha mãe cuidando dos cachorrinhos. Tudo passa como imagens desconexas e sem ordem aparente. Principalmente as mulheres. Fui homem de tantas, e de tantas acho que pouco restou no peito. Um buraco, desvio e continuo minha pedalada rumo a eternidade. Tenho todas essas imagem jorrando feito sangue de um corte na jugular. Meus amigos, minha música e meu desamparado anseio por rumo na vida.

Está verde, atravesso a toda velocidade a Avenida Santo Amaro, um carro que ameaçava passar no vermelho freia bruscamente e buzina em desespero, nem olho para trás, sigo pedalando sem deixar que nada se fixe na minha mente. A incansável e nostálgica imagem de meu primeiro amor se mistura como a vodca com coca cola que alimentava minhas noitadas. A imagem da ultima desilusão. Por que ela tinha que ser tão egocêntrica, poderíamos estar juntos até hoje se não fosse a sucessão infiel de fatos que acompanha minha vida. Passo a pedalar mais rápido, o asfalto aqui na Brigadeiro Faria Lima é mais liso, é uma reta incrível até muito além do meu campo de visão. Lembro do carro exótico que um dos meus amigos tinha e que cortava o silêncio da noite rumo a um porão qualquer em busca de ar e vida em uma cidade suja e claustrofóbica. Éramos verdadeiros imbecis. Ora um mostrava a bunda na janela, ora outro gritava feito um primata ou mesmo escancarava elogios duvidosos a qualquer bunda que desfilasse na calçada.

Pedalar mais rápido, não quero formar preceitos nem idéias concretas, quero apenas virar uma máquina . Que corre e deixa o mundo escoar pra trás. Um gol geração três sem dar seta vai querer fazer uma conversão ilegal. Pedalo feito um louco, mas tenho faro para essas coisas, aquele cara mais tempos menos tempo vai virar e se eu não estiver ligado vou virar uma poça vermelha no asfalto. Brusco feito um animal acuado me tiro do canto direito do carro e pedalo mais pelo meio da avenida, a tempo de ver o gol prata virar sem prévio aviso. Aquele carro era o mesmo que costumava rodar até o outro canto da cidade em busca de diversão. Lugares desconhecidos, um maluco lendo poesia no carro, vinho, a praça do por do sol. A imagem da praça fica fixa na minha cabeça, a bicicleta já sabe o rumo que deve tomar.

Passo na frente do Shopping Iguatemi, lembro da época que trabalhei feito escravo numa loja. Era de domingo a domingo, com folgas esporádicas. Trago na cabeça a recordação do amor que me levou pedaço do peito. Logo trato de me decompor desses pensamentos chulos e pedalar a praça era logo além do bairro de Pinheiros, a Avenida Rebouças já ficava para trás e minhas pernas eram uma perfeita engrenagem de pedalo. Sempre caminhei só, solitário como um espanhol deve ser. Com as consequências de minha personalidade nas costas. O caralho as consequências. Pedalo. Pouco me importava também o que aconteceria.

Chego nessa emblemática praça encharcado de suor. A tempo de me jogar na grama e assistir o por do sol nessa cidade que me concebeu como lar. Pedalo por que vivo, ou talvez mesmo, vivo por que pedalo. Estava orgulhoso do tempo que havia levado até aqui. O sol se ocupa de lançar os últimos raios sobre essa terra da perdição. A noite, os verdadeiros demônios se lançam atrás da pureza. Ou você se esconde em sua fortaleza domiciliar ou você se entrega a uma vida de instintos e tentações. A fúria de uma paixão repentina assusta qualquer um, menos eu, já levei tanta facada que anestesiado digo que não vou me apaixonar novamente. E sei que isso é uma questão de tempo, de sangue correndo nas veias e de acaso para acontecer. O mesmo acaso que formou meu nome numa sopa de letras na cabeça do meu pai. Ludio, não era Lúcio nem Túlio, não tinha acento nem sentido. É único. Ludio Yuri, um anagrama de pessoa.

Aos poucos você vai entender a loucura que me persegue, por hora não precisa de mais nada. Apenas um trago longo e demorado no meu Lucky Strike. Apenas a porra de um lá menor no violão e o olhar perdido no horizonte. Sou um anagrama sim. Meu nome traduz a metáfora que me assola dia após dia. Apaixonado sem mulher, ciclista sem bicicleta, sobrevivente sem vida. Um artista desolado no coração de uma cidade vil e cruel.

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