O gosto do asfalto era salgado e ao mesmo tempo confortante. Com enorme prazer o Zé aceitava sua nova posição perante o mundo, na horizontal com o sol castigando suas costas. Seus poros exalavam álcool e sua percepção já a muito tempo tinha passado a ser no mínimo questionável, e o único que soube receber de braços abertos este saco de carne, que era jogado de lá pra cá sem o menor carinho o qual um bicho humano merece, foi o amargo e receptivo asfalto da Rua Augusta. José Carlos de Deus Filho não lembrava de muita coisa, apenas flashes. Algo assim:
Oito da noite, já tinha deixado a construção pra trás faz tempo, tinha sido um dia diferente. Um de seus colegas havia tropeçado e se acabado no meio da Rua Bela Cintra atrapalhando o já caótico transito da Paulicéia Desvairada. Aquilo havia lhe chocado um pouco, foi estranho ver alguém vivo e cinco minutos depois um monte de carne deforme servindo de estopim para 115km de congestionamento. Dorival disse: “Deixa ser, como será sempre, não cabe agente a brincar com os peões divinos, mais me sobra é tomar um pileque depois do expediente, vamos?” e nessa o Zé embarcou na longa viagem que faria entre o sol poente e o sol nascente. Pegaram o 775C e desceram ali no começo da Rua de Neon próximos do antigo prédio do Estadão. A fumaça tomava conta do horizonte e as luzes amareladas do centro anunciavam uma sexta nostálgica para aquele rapaz que costumava todos os dias rumar até Itaquera para dormir no seu quarto sozinho esperando pela rotina do amanhecer o apanhar novamente. Pararam logo ali em um boteco próximo da praça dos Teatros, como costumavam chamar. Ele lembra que foi a cachaça mais sozinha que já escorregou goela abaixo.
Dorival já alto e se despediu correndo para pegar o último ônibus quando já eram quase meia noite. O dono do bar, um velho barrigudo que parecia não ter se quer um pingo de alegria em sua vida tratou logo de colocar o Zé pra fora. De tanto falarem pro Zé que a solidão devora a alma, ele engoliu seco e se perdeu no abismo que é a moralidade e o instinto. Quando se achou estava a porta de uma dessas casas de diversão noturna. Pagou os cinco contos de réis e subiu as escadas sob a luz avermelhada e borrada do bordel. Ele sabia que não era bem assim, mas afinal queria apenas poder fingir. Sempre lhe disseram sem motivo algum que tudo iria mudar e lá estava ele, uma mulata de um metro e oitenta no colo. Ela não era bonita, mas possuía aquele charme que todas tem, sabia onde tocar e como falar. Era uma atriz da vida, que aprendeu tomando muito na cara. Ela tinha os dentes um pouco tortos e o corpo já não era de nenhuma menininha, pedia trinta conto e mais o dinheiro do quarto. As luzes, a música, o sentimento de solidão aliado a euforia do toque mesmo que vendido de alguém. O nó na garganta a lagrima reprimida, tudo forçavam o pobre Zé a entrar naquele quarto.
Foi um ato de silêncio, inexpressivo e vazio como a sociedade que o cercava. Ela fez como se seguisse um manual de instruções. Se ajoelhou, tirou as calças do Zé e lhe deu prazer com a boca, depois o fez deitar na cama e foi por cima, quase que no automático. Um objetivo claro era, fazer o cara ejacular rapidamente para assim buscar outro cliente e assim ir ganhando a vida. O Zé como muitos outros não demorou e logo se encontrou perdido no sentimentalismo que pairava no ar. Ela enquanto foi até o banheiro, porta aberta e se limpou ali com um pedaço de papel higiênico causou uma depressão maior ainda no peito do Zé. Cantarolava baixinho: “Se o senhor não tá lembrado, dá licença de contar...”. Ele tentou forçar um sorriso em sua careta misto de tristeza e aflição: “Adoniram falava de nós.”, ela sorriu tão ou mais cinicamente e disse agora sem a melódia: “Deus dá o frio conforme o cobertor” e abriu a porta indicando com a cabeça pro Zé sair.
O Zé que agora só via tristeza naquela casa de tantas diversões saiu e caminhando foi até o Largo dos Aflitos, cada passo doía no coração. Achou um boteco aberto, clima pesado, algumas almas solitárias timidamente bebendo a cachaça nossa de cada dia. Buscou seu lugar no meio de seus irmãos de alma e pediu mais uma dose pro Ceifador. Lembrando de sua infância viu o dia clarear e foi jogado na rua como saco de esterco, sem um centavo pra pagar seu mais nobre analista. Caminhou por algum tempo perdido até se ver na frente do mesmo bordel que o acolhera algumas horas antes, acreditou que era um milagre. Tropeçou o meio fio como se dançasse salsa e sentiu o chão lhe acolhendo tão maravilhosamente bem. A paz.
sexta-feira, agosto 31, 2007
O Cachaceiro Zé.
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3 comentários:
adorei!
contos dramáticos, meus favoritos!
beijos
Gostei. Escreva mais sobre o Zé.
Você escreve muito bem. Esse conto ficou bem apelativo, mas ficou legal. Me lembrou uma musica de mpb muito antiga, mas que nao me recordo o nome...
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