quinta-feira, março 27, 2008

Em Busca do Eu - 7

Aonde está aquele velho inútil? Já devia ter subido pra cá e deixado comida e suprimentos básicos a mais de quatro dias. Se ninguém vier até essa inferno, vou acabar morto por aqui. Não tem como descer isso tudo a pé. Morreria no meio do caminho. Devo estar ficando maluco. Não tenho mais a noção da hora, deve ter passado do meio dia, mas não sei ao certo. Minha barriga ronca de fome, e tive que entrar em um racionamento forçado.

Esse vento que teima em assoviar por entre as encostas das montanhas sempre me trás o presságio que o velho safado se lembrou que existo. Minha diversão tem sido imitar animais. Tem dias que quase me convenço que sou um tigre ou um gorila. Pulo pela casa, ocupo o tempo, evito os fantasmas que teimam me assombrar. Eu e essa minha música imaginária. Esse ruído rudimentar de engrenagem desgastada de uso. Parece uma máquina engasgada com seu sangue. Sou um gorila, e enfrento esse frio de peito aberto. Arranquei toda a roupa e me posto na porta de casa, controlo minha respiração em busca da irracionalidade tão desejada. O barulho mecânico aumenta.

Posso quase não sentir nada. Apenas o frio, meu corpo, meu apoios com a terra, minha postura desconstruída em favor da condição verdadeiramente animal. Desconsidero sonhos de grandeza, sonhos de um tempo melhor. Sou apenas eu e a natureza. Meu estado primal e irracional de sobreviver custe o que custar. Seguro, como se fosse minha mais preciosa arma, um pedaço de madeira que separei para me defender deles.

Sinto meu pé já enterrado na neve, quase não o sinto na verdade, isso que me desperta a sensação de existência deles. Maldição, a racionalidade volta a me assombrar. Um sol surge na encosta da pedra, brilhante feito um demônio sedento por sangue. Outro sol surge em seguida, se aproximam de mim. O tilintar das maquinas me assombra mais, seguro como se agarrasse a vida por um fio em meu pedaço de pau.

Um enorme demônio de metal surge por detrás das pedras e desses astros brilhantes que me recuso a crer serem tão magníficos como o sol. O bicho metálico destroça minha neve e engole tudo se aproximando a um ponto de quase sufoco de meu bicho-homem. Seguro mais forte no pedaço de pau, sinto fissuras abrirem na palma da mão e o sangue escorrer. Finco o pé, ou o que creio ser meu pé com mais afinco na terra e meu olhar de bicho predador fixa-se nesse Lúcifer pós moderno. O demônio para a cerca de dois metros de distância. Meu bote está preparado. Ele abre sues braços imensos.

Por um lapso de ação vejo pequenos seres saindo de dentro do demônio. Outra estrela surge apontando pra minha cara, mordo o lábio e solto com ferocidade no ser da esquerda. Toco de madeira em mão acerto sua cabeça com desejo de morte. Primam em mim a força de matar esse invasor de meu espaço. Já caio sobre esta presa e a ataco com seguidos golpes na cabeça. Sinto o choque frio da borracha semi congelada me acertar no lombo, me viro e vejo pessoas me acertando com força golpes com cacetetes. A dor aguda no corpo me desperta desse sonho bizarro, são guardas e um jipe da patrulha Andina que vieram até cá. Tento falar algo, tento grunhir palavras, mas nada me vem em mente, devo estar chorando, a dor é demais, ao cair pra trás vejo o corpo do velho safado estirado, a neve vermelha de sangue.

A visão mesmo turva me revela a minha casa escancarada, porta aberta, folhas voando, fogo aceso, minhas roupas formam borrões coloridos por toda a imensidão branca. Um brilho do assoalho marrom a beira da porta da minha casa me dá a impressão de visualizar a siringa que antes me trazia tanto alivio. Devo estar tendo alucinações de dor, o turvo dando lugar ao negro.

O silêncio exceto pela melodia da música invisível em minha cabeça. “Death on two legs / You’re tearing me apart”. Por fim o silêncio que só a inexistência nos proporciona.

Acordo ensopado em suor, sentindo a pedra fria contra minhas costas, o lençol fino, as paredes de concreto frio e sem sentimento. E visão das grades me separando do mundo trazem de imediato o impacto das lembranças, da cabana no Andes, do velho safado estirado na neve, do meu pedaço de pau assassino. Da siringa salvadora na veia. E de trás dessa jaula, só consigo respirar e recordar o que vivi até agora.

Um comentário:

C.J. disse...

Esperando Godot?