Pra mim, minha mãe morreu por viver demais, por se adequar demais ao que a cerca. Cinco anos antes meu pai morreu pelos mesmos motivos mesquinhos. Tudo isso pra mim são cenas de uma vida. De uma porra de vida conturbada e triste. Não que eu seja um desses caras que se arrasta pelos cantos, se afoga no álcool e é um típico fudido pelo mundo. Longe disso, na real, quem me olha pensa que sou um cara muito bem encaminhado nessa doideira. Tudo seguia o roteiro na mais perfeita harmonia, até aquele fatídico dia da colação de grau. Perdi a noção do tempo, acredito que agora estou em algum dia em novembro.
Já me acostumei com o pouco oxigênio nas alturas dos Andes. Viver no topo do mundo é uma baita lição. Aprendi que não preciso do excesso doentio que somos levados a acreditar que é o mínimo para se sobrevivência. Admito que sinto falta dos filmes e da música que me foram alicerce para chegar aonde estou hoje. A solidão do diabo é o que mais aterroriza o ser humano. Se no século passado tivemos a grande depressão do mercado norte americano, nesse século temos a grande depressão da alma do mundo. Todos se isolando o máximo possível e ao mesmo tempo se cercando de afortunados que fazem parte de seu ciclo de amizades. Ninguém quer ficar sozinho. Porém ninguém enxerga dois palmos a frente do seu nariz. A quanto tempo não se ouve o pronome nós utilizado de forma correta e não da forma mesquinha e egoísta que vem sendo empregado.
Arrumei o emprego que muitos rejeitaram. Cuido de uma pequena fazenda de folhas de fumo nas alturas do andes. O fazendeiro é um senhor torrão, desses ariscos feito gato de mato. Beirando seus cinqüenta anos, não é casado e nem tem filhos. Se comunica o mínimo possível e eu nunca o vi sorrindo. Quando me ofereci ao emprego, logo desconfiou, o que um jovem Brasileiro, estava planejando ao se isolar em uma área tão inóspita. Me deu o emprego e cheio de ressalvas vinha verificar a condição do lugar e o meu trabalho quase todas as semanas, percorrendo os sessenta quilômetros de estrada estreita e em péssima condições que me separam do pequeno vilarejo de San Pedro do Atacama. Atualmente, vem uma vez a cada dois meses mais ou menos, me traz comida, algum óleo, uma ou outra ferramenta que tenha requisitado em sua ultima visita e não se dá o trabalho de verificar toda a fazenda, apenas dando uma checada por cima.
Meu trabalho não é ruim, tenho uma rotina de tranqüila, devo manter qualquer intruso longe, o que acho um certo exagero, nunca sequer vi uma alma viva por aqui. Cuido das plantações que não são grande coisa e consigo fazer em metade do dia e de resto mantenho a casa arrumada e me ocupo da mais perfeita paz de espírito que podia buscar. Apesar de já ter sido alertado diversas vezes que o inverno quando chegasse seria extremamente complicado de enfrentar, e que seria melhor descer para a cidade durante todo esse período gélido, esse era o meu desafio máximo. Quando chegasse iria atravessar de peito aberto, e assim seria um só comigo mesmo. Um só entre essa razão nula e esse instinto selvagem.
A casa é bastante simples, construída de maneira bastante rudimentar, é basicamente um cômodo de uns vinte metros quadrados. Em um canto tenho um pequeno fogão de barro, no chão mesmo, fogão a lenha, dos antigos, o mais interessante é a forma que ele dispersa o calor. A chaminé não é convencional, ela desce e passar por baixo de todo o chão da casa em espiral, e sai pela lateral oposta da casa. Um sistema bastante simples, e que mantém a casa quente durante as frias noites. No lado oposto uma cama na altura do chão mesmo e um baú aonde guardo minhas coisas. Na parede oposta a porta tenho uma janela que dá para uma montanha linda que apelidei de pico do lobo. Em algumas noites de insônia, posso jurar ouvir o uivo do matilha vindo daquela direção. Mas acho que é só minha imaginação fertilizada por Hollywood, uma doença eterna, cicatriz cravada fundo no meu mais precioso bem. Abaixo da janela um pequeno armário que vez ou outra também uso de mesa em conjunto a cadeira de palha ao lado dela.
Nesse modo simples de vida, achei o que me faltava. Cumpri passo a passo o que me foi imposto. Agora a última e grande aventura será vencer esse inverno que castiga até os mais acostumados moradores da região. Porém antes acho justo contar como cheguei aqui, tudo que passei desde a colação de grau. Não foi pouca coisa, porém acho que a busca por uma vivência mais natural e mais perto do que deveríamos ser por essência, requer todos esses ritos de passagem. Essa barba ermitã e esse cabelo falho, não são falta de civilidade, são sinais de amadurecimento. Depois que renasci para o mundo selvagem e real, tive que engatinhar feito bebe, até chegar aqui. E agora sentado nessa pedra observando o grande nada que se estende da fazenda até o além do pico do lobo, lembro de cada tombo e cada aprendizado dessa jornada.
quinta-feira, março 06, 2008
Em Busca do Eu - 2
Marcadores:
Em Busca do Eu
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário