A estrada era nossa constante, ao lado Julia perdida em pensamentos devia estar longe, refletindo sobre seu Homem, sobre seu filho. Eu me contentava em meditar olhando as faixas da estrada, uma linha que acalmava e ao mesmo tempo despertava uma pontada de desespero. Me sentia bem de estar entregue a esse voluptuoso desejo de sumir e me desesperava ao ponto de quase jogar o coração goela a fora o fato de estar deixando tudo para trás.
Em meio a esse limbo mental, o carro deslizava país adentro e logo avistamos a placa nos recebendo a nossa Londres brasileira, feito serpente pronta ao bote, saltamos para dentro de Londrina, foi um ato meio que inconsciente, no demais costumávamos passar sempre por fora das cidades e não perder tempo com besteiras.
Não sei se é o ar outrora majestoso de uma das maiores importadoras de café do país, ou simplesmente o silêncio bem colocado e totalmente confortável que cercava o carro naquele hora em que o sol já tinha percorrido metade de seu trajeto diário. Sei que ela não questionou e logo o carro rodava lentamente pela avenida dez de dezembro, passei a observar a vida urbana, um hábito que me persegue desde cedo.
Desde longe consegui identificar o vulto de um pobre desiludido que devia ter bebido todas na noite passada e agora estava jogado na calçada, como um saco de lixo. Quando olhei para o lado, percebi que Julia fixava o olhar no mesmo sujeito entregue a sujeira da sarjeta. Comentei que é duro chegar tão fundo e não conseguir se levantar.
Ela com seu jeito jovial, deu um pequeno sorriso e me encarou, talvez tenha sido aqueles olhos ou aquele sorriso lacônico, só sei que me senti extremamente invadido, o comentário veio como uma faca no peito. Parecia que no segundo que antecedeu o golpe, ela tinha ido fundo em minha alma, buscado aquele ponto mole e rasgado feito pão velho. “E a gente que acha que já foi tão fundo nesse poço da vida...”. Foi uma dedada violenta no orgulho ferido.
O semáforo antes vermelho, abriu e as buzinas surgiram, focado a minha frente dirigi por mais três quarteirões e encontrei uma velha padaria decadente, daquelas com vidros fume e uma máquina giratória de frangos na porta, encostei o carro e desci, ela deve ter sentido pena desse pobre mauricinho bancando o herói comunista. Sentei numa mesa da padaria e pedi uma cerveja, ela sentou-se cerca de cinco minutos depois, trazendo a chaves do carro que tinha deixado no contato. “Eu tranquei o carro e estava pensando em comer um desses frangos o que me diz?”. Anos se passaram em minha cabeça, demorei pra criar coragem e encarar quem desfilou sobre meu cadáver apodrecido.
Quando a encarei, encontrei novamente aquele rosto sereno que me encantara, aquele sorriso de menina sapeca, consegui pela primeira vez perceber um certo carinho que ela tinha por minha pessoa. Em seguida, despejei todas minhas angústias, minha família de berço de ouro, meu futuro brilhante, meu refúgio em caras como John Fante e Albert Camus, meu glorioso lugar no topo da sociedade. Lamentações escorriam igual a cerveja que era jogada pra dentro, o dia passava e o peso de minhas costas não facilitava. Ela ouviu tudo com paciência e com uma ternura fantástica, hora segurando minha mão, hora afagando meus cabelos. Quando as palavras já haviam se esgotado e apenas lágrimas restavam, deitei com a cabeça na mesa e fiquei observando a calçada, com o agito descomunal do fim do dia, as pessoas desesperadas para voltarem para casa e deixarem essa máscara macabra que a sociedade impõem frente a sobrevivência. Sentia apenas o carinho de seus dedos brincando suavemente nos meus cabelos.
Havia desabado, e lá estava ela para me segurar, aos poucos começou a dizer o que pensa, dizer que de nada vale o passado e o futuro, se não vivermos o presente, que se nosso passado é vergonhoso e nosso futuro desastroso, somente o que fazemos agora no presente pode remediar essa situação, não percebi, porém certo momento me levantei para prestar atenção nos desabafo dela. Foi uma troca muito tênue de assuntos, juro que não percebi quando eu deixei de ser o foco e ela havia virado o assunto da mesa. Pedimos cachaça, uma garrafa inteira, e uma porção de frango frito, ela me contou mais de sua vida.
Pela primeira vez consegui me ligar a alguém de verdade. Era dessa porra que eu falava o tempo todo aos meus amigos. Temos que ser cúmplices, ela me entregava de mão beijada sua vida. Detalhou como sua família era ultra religiosa e sonhava com o casamento virgem de sua única filha mulher. Contou como seus irmãos viviam se divertindo e ela era obrigada a ajudar a mãe dia e noite, noite e dia. E finalmente chegou na parte em que revelou a festa de reis em que a família malhava Judas, e que esse loiro vindo da televisão a abordou, devia estar meio alto, o cheiro de bebida era claro, mas na hora, era um momento mágico. Ela nunca havia tido a oportunidade de estar assim, com alguém que demonstrava real interesse a sua pessoa. Com muito menos do que o cara imaginava ser necessário, a levou para detrás da igreja e ali mesmo arrancou seu cabaço, meteu feito besta selvagem. Ela sentiu como se a rasgassem no meio, ao mesmo tempo que sentia sangue quente escorrendo em suas coxas, sentia-se mulher pela primeira vez.
Depois disso, o loiro, sumiu, nunca mais o vira. Só sabia que vinha de uma cidade ao sul do país, nem o nome da cidade ela sabia. Não demorou muito para os enjôos aparecerem e logo a família desconfiou de algo. Assim que despontou a barriga, foi expulsa de casa a ponta pés. Apanhou feito cão de rua do pai e dos irmãos que se consideravam sujos pela indignidade da filha. Foi amaldiçoada e ordenada a nunca mais voltar.
E foi desde então que de trecho em trecho, do jeito que dava, foi viajando rumo ao sul. Não pela real busca de seu príncipe, e sim apenas por ser sua única referência de um mundo melhor. Logo fez amizade com uns travestis em Salvador e lá aprendeu a se vestir com mais jeito de mulher, admitiu que ganhou uns trocados com um velho rico, que as duas bonecas que acolheram arranjaram. Não tinha sido bom e ela nem pretendia repetir essa experiência, porém a barriga pesava, e ela logo não teria como ganhar essa grana, que parecia ser tão fácil.
Acabou por me contar das duas travestis que praticamente a salvaram quando chegou a Bahia, eram duas negras de quase dois metros de altura, apesar do tamanho todo, Julia me jurava que tinham toda uma infinidade de qualidades absolutamente femininas. Se vestiam feito mulher, agiam feito mulher, e principalmente amavam como mulher. A acharam em um beco atrás da rodoviária, aonde tinha sido espancada por uns moleques que tentaram lhe assaltar e se enfezaram ao ver que não tinha nada.
As duas cuidaram dela, lhe deram comida, lhe deram roupas, e diziam que tão logo ela se sentisse bem, poderia seguir seu caminho. Foi quando certo dia perguntou alguma forma de ganhar um trocado e Julia foi apresentada ao mundo da prostituição. Foi apenas um único programa, para aquele velho extremamente rico, ela achava que era algum político, casado e infeliz com a mulher, lhe pagou muito bem e com essa grana ela conseguiu chegar até o ponto que me encontrou na estrada com um pouco mais de dignidade do que as surras e humilhações passadas.
Eu escutei tudo isso com um nó na garganta, a pouco chorava o fato de ter uma família que me ama, de ter dinheiro, emprego e liberdade para fazer o que bem entender. Agora ela me contou de nariz em pé sua história, e não derramou sequer uma lágrima. Não tinha idéia do que fazer, o frango já tinha se acabado faz tempo, e cachaça beirava a metade da garrafa. Sem reação, esperei. Ela se levantou e abriu os braços para um abraço. Me levantei e agarrei com força aquele agasalho surrado, abracei e beijei sua face um tanto de vezes. Ela me emanava um calor acolhedor. A dor do meu passado, já era fútil, a decisão do meu presente me fortalecia.
Quando me afastei de leve do seu corpo, observei aquela boca em forma de morango, mordi de leve meus lábios e novamente colei nossos corpos, agora boca a boca também. Beijei sem medo do que viria depois, e graciosamente me senti correspondido, um beijo carinhoso e longo. Nem o barulho da avenida ao lado nos incomodava, nem nossas vidas tortuosas, no momento era apenas minha boca na boca dela, minha alma em comunhão com a dela.
terça-feira, março 25, 2008
Em Busca do Eu - 5
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